Tudo começou com uma subida de La Paz até um lugar chamado La Cumbre, que assusta com os seus 4800 metros acima do nível do mar. Além da subida ser extremamente cansativa, o frio se torna cada vez mais insuportável, com ventos que rasgam a face e uma neblina que me impedia de ver 10 metros à frente. Quando cheguei ao pico da montanha, simplesmente esqueci de tudo ao vislumbrar a cidade de La Paz bem do alto, com suas montanhas nevadas e construções fantásticas nas margens de cada morro. Perdi o fôlego, mas felizmente não foi por causa da altitude, com a qual já estou mais do que acostumado.
De La Cumbre em diante seriam umas 3 horas de pura descida, o que teoricamente me daria certa tranqüilidade, mas se não tivesse aventura não seria mais o Roda América!!! Pois bem, vi uma estrada paralela, sem asfalto e cheia de pedras, com uma placa escrita “Desvio para bicicletas”, e foi meu grande erro seguir por ela. Enquanto baixava a sinuosa estrada, apareceram algumas bifurcações sem placas para me dizer por qual caminho seguir, me dando somente as escolhas de retornar ou tentar a sorte. Escolhi a segunda opção. Os que bem me conhecem sabem que não sou exatamente um cara sortudo, por isso depois de seguir montanha abaixo por mais de uma hora, eis que simplesmente me deparo com um rio, sem estrada nem qualquer possibilidade de caminho adiante.
“Ok, voltarei”, pensava eu com meus borbotões, mas ao olhar para trás e ver a montanha que teria que subir percebi que esta seria uma tarefa árdua. Pedras grandes me impediam de subir com a Capitu, então me limitei a carregar minha fiel escudeira lentamente por mais de duas horas a fio. Não conseguia ver quase nada devido a neblina que não dava trégua, apenas me limitando a seguir mecanicamente a estrada, sem poder ver se haveria algum caminho mais curto até o asfalto. Pela quantidade de brumas, parecia que em breve eu chegaria em Ávalon.
17:30, iria escurecer em breve. Peguei a barraca para dormir e recomeçar a subida no dia seguinte, quando vi que uma das peças estava quebrada. Ai ai ai ai ai ai ai ....Com frio, sem ver quase nada, sem barraca, sem qualquer bípede ou sinal de civilização...As coisas começavam a se complicar pro meu lado. Não sei explicar exatamente como isso acontece, mas quando o bicho pega não me dá exatamente uma sensação de medo, apenas fico com uma espécie de “sentido mais apurado das coisas”. Uma calma e um instinto de sobrevivência extremamente apurados se ocupavam de 100% de mim desde aquele instante.
Ao subir encontrei um grupo de índios que caminhava lentamente entre as montanhas, então apressei-me em alcançá-los para pedir informações e ajuda. Apenas um índio que aparentava uns 13 anos falava, muito mal, castelhano (os outros se comunicavam em Aymara), e ele começava a traduzir aos outros o que eu dizia. Depois que o jovem havia dito tudo, aguardei ansiosamente enquanto os outros índios discutiam em Aymara o meu destino. Eis que eles olharam para mim e apenas sorriram amavelmente. Dessa vez não precisei de tradução, pois certas coisas são universais.
O que aparentava ser o índio mais velho separou 3 outras pessoas para me ajudar a escalar uma montanha, que daria em uma estrada asfaltada. A esta altura do campeonato eu já não tinha pernas pra escalar uma montanha carregando qualquer coisa, quanto mais uma bicicleta e mais 40 quilos de equipagem, e os índios perceberam isso e carregaram absolutamente tudo para mim montanha acima, e tenho a impressão de que carregariam até a mim mesmo se eu pedisse. Já habituado aos costumes bolivianos, peguei um pouco de meu escasso dinheiro e ofertei a eles, quando para minha surpresa eles recusaram categoricamente. Os índios sorriram mais uma vez e disseram ao tradutor do Grupo: “Não cobramos ajuda a quem necessita, apenas ajudamos. Este será seu presente de natal, pra recordar o que representa o povo boliviano". Jamais esquecerei esta gente forte, amável e de uma pureza de espírito incompreensível para muitos.
Desta vez também não precisei de tradutor. Apenas dei um longo e emocionado abraço em cada um dos que me ajudou, tentando com este gesto dizer o que jamais conseguiria ser traduzido para qualquer idioma.