sábado, 20 de outubro de 2007

Nota de indignação


Há poucos dias descrevi um homem sendo brutalmente assassinado em Uyuni, dizendo com indignação o quanto isso tudo é cotidiano para nós brasileiros. Para comprovar isso, digo que apenas recebi e-mails de curiosos que me perguntavam se havia rolado algo mais com a mulher da Suíça ou não.

A QUEM INTERESSAR Nº 1

A mulher suíça é apenas uma grande amiga. De fato dormimos no mesmo quarto, porém qualquer pessoa que viaja com mochileiros sabe que as habitações são com umas 10 camas normalmente. Portanto, dormimos eu, a Suíça e outros tantos turistas, mochileiros como nós.

A QUEM INTERESSAR Nº 2

O Boliviano morto se chamava Leonardo Muñoz, que tinha uma esposa apaixonada e duas filhas lindas chamadas Wendy e Blanca. Leonardo Foi morto porque devia uma quantia equivalente a 48 dólares.

Uma vida por aqui pode valer apenas 48 dólares, amigos. O seminário que eu ministrei em Uyuni, de apenas 4 horas, vale mais do que os 32 anos interrompidos da vida de Leonardo.

La Paz - stress e roubo de celular

BolíviaLa Paz, 19 de outubro de 2007.


Ao final da tarde cheguei à capital boliviana, sem grandes dificuldades. Entre Oruro e La Paz, vi pela primeira vez a já então esquecida combinação de estradas planas e asfaltadas! Dias muito tranquilos, portanto.

À primeira vista La Paz é uma cidade linda, com o Illimani cheio de neve a ilustrar a cidade, bem como uma curiosa mescla de ares incaicos em lares industriais. É uma cidade muito desenvolvida (até demais para mim), por isso sofre do mal das grandes metrópoles: Engarrafamentos, mendigos, ruas lotadas de gente que te esbarra sem pedir desculpas, prédios altos, barulho e etc. AAAAAAAAAAHHHHHHH!!!!!! rs. De quebra, ainda roubaram meu celular! Talvez por solidariedade, para me fazer lembrar de meu querido Rio de Janeiro.

Agora sei como se sente um caipira que resolve visitar a cidade grande. É claro que eu deveria estar acostumado com um ambiente tão urbano, afinal sou carioca, mas estive por muito tempo visitando lugares muito mais isolados e pessoas muito mais simples. Buzinas, gritos, música ruim, carros e muitos outros barulhos entravam simultaneamente em minha cabeça, de modo a me fazer entrar num estado de stress, ou faniquito, sei lá.

Resolvi caminhar mais um pouco então para ver se nesta cidade tão civilizada havia de fato algum sinal de civilização. Pedia informações e sentia que interrompia vidas apressadas, mendigos pediam dinheiro com cara de choro sem lágrimas, ambulantes me ofereciam coisas das quais não necessito, pessoas me olhavam com admiração ou espanto e etc... Por aqui chamam os índios de selvagens, mas creio que meu padrão do que é de fato ser civilizado seja bastante diferente do deles, pois eu não trocaria um mineiro de Potosí por mil das pessoas apressadas de La Paz.


Definitivamente, terei de me adaptar ao ritmo de La Paz. Não muito, pois confesso que gosto mais de minha nova maneira de viver os lugares, as pessoas e a vida. Mesmo com tudo isso, imagino que eu vá encontrar por aqui pessoas amáveis ou lugares onde de fato eu me sinta bem, bastando apenas que eu tente olhar a cidade com outros olhos.

Liberdade na forma mais pura

BoliviaOruro, 18 de outubro de 2007.

Em toda minha vida estive atrelado a compromissos cotidianos: Estudar para passar de ano, depois estudar mais para entrar numa boa escola no ensino médio, mais ainda para entrar numa boa faculdade. Após isso, é necessário batalhar por um bom emprego, depois crescer nele pouco a pouco. Depois disso tudo, é necessário pagar o gás, a luz, o aluguel, a vida, tudo.

Pela primeira vez na vida me sinto confortável o suficiente para fazer exatamente o que quero e da forma que bem entender, e nada paga esta formidável sensação de liberdade. As escolhas, bem como as consequências, são todas minhas, o que me dá uma boa sensação de liberdade com responsabilidade. Posso com isso me preocupar apenas em viver a vida intensamente, sem grandes cobranças.

Mais do que o estável, me encanta o incerto; mais do que das metas, gosto dos fatos; mais do que saber com quem estou, prefiro estar bem comigo mesmo. Este é um padrão de vida um pouco louco para muitos, mas sei que todos compreendem que estou bem assim. Se eu pensar desta maneira, o mundo consegue ser para mim ao mesmo tempo o maior e o menor dos lugares.

Sem me dar conta antes, percebo que falo de países como quem fala dos cômodos de sua própria casa, mas não é muita diferente! O mundo agora é minha casa. Redonda, bem espaçosa e repleta de pessoas com quero estar. No final das contas, o mais importante não é exatamente em que cômodo de minha nova casa estou, contanto que esteja exatamente onde quero estar: “Acima de meus sapatos e debaixo de meu chapéu”, como dizia Oscar Wilde.

sábado, 13 de outubro de 2007

Novidades, muitas novidades

Amigos,
creio que ao ler as novidades do blog vocês entenderão o porque de mais um sumiço nas postagens. Creio que esta foi a fase com mais mudanças de planos e situações marcantes de minha aventura pela América do sul.

Trabalhei na mina, joquei futebol, vi um homem sendo assassinado, joguei golfe em campos de sal, putz, muita coisa, só lendo!

As duas novidades principais:

1 - Agora estou trabalhando temporariamente como consultor de marketing na Bolivia. Agora Virei palestrante internacional! Fiz um video e postei, senão ninguém iria acreditar em mim

2 - Muidei drasticamente de plano: Vou pedalando RUMO A CUBA! Além do mais, consegui arrumar tudo para passar uns dias com Alberto Granado, melhor amigo de Che Guevara (se não conhecem, vejam "Diários de motocicleta")

Bom, espero que gostem tanto de ver estas novas aventuras quano eu gostei de vivê-las. Agora tá tudo atualizado: Fotos, videos e textos.

Um grande abraço!!

Ricardo Martins

Saudades, saudades, saudades...

Bolívia – Uyuni, 11 de outubro de 2007.

Mais uma vez tenho que fazer uma série de despedidas ao sair de Uyuni. Sei que algo paradoxal, mas me sinto psicologicamente, porém emocionalmente fraco.

Para um viajante como eu não existe até logo, apenas Adeus. Tá difícil de lidar com isso....

Vi um homem sendo assassinado

Bolívia - Uyuni, 10 de outubro de 2007.
Depois de ter passado a noite com uma amiga suíça, saíamos de um barzinho quando vimos um homem sendo brutalmente assassinado a poucos metros de nós. Não sei se me espantei mais com a cena ou com o fato de já estar acostumado com a violência, pois venho do Rio de Janeiro.

Ao sairmos, havia um homem deitado no chão da rua, se movendo com certa dificuldade. Uma caminhonete passou por ele com as quatro rodas, uma delas pela cabeça, de uma só vez. O carro fazia a volta e se preparava para passar uma vez mais sobre o corpo agora não mais se movia. Olhava para expressão do motorista para buscar o que ele sentia ao matar uma pessoa assim tão brutalmente, mas não vi medo, raiva, remorso ou qualquer coisa que possa fazer desta pessoa um ser humano.

Levei apressadamente Janine, minha amiga suíça, ao bar novamente, para evitar choque maior do que já era e também por medo de perigos maiores para nós dois. 15 minutos depois voltei ao local e não havia mais corpo algum, apenas no chão um boné, muito sangue a um hambúrguer comido pela metade. Se o homem estava comendo hambúrguer, perguntei ao homem da barraca e aos dois clientes o que havia ocorrido, quando fiquei muito espantado ao obter como resposta apenas algo como “que homem? Que carro? Não vi nada!”. Pelo visto a lei do silêncio não é algo exclusivo de nós brasileiros.

Janine não parava de chorar. Era como se ela se sentisse uma princesa vivendo em um mundo protegido chamado Suíça, descobrindo que não era uma princesa e tampouco o mundo era como seu país. Se perguntava como a vida de alguém poderia valer tão pouco, como era possível que nada fosse acontecer com o assassino depois e etc. Muito difícil constatar isso, mas situações como esta e impunidades do tipo são naturais para mim. Fomos para o hotel e mal dormimos, pois ela chorava até o amanhecer, se perguntando quando sairia da Bolívia e quando tiraria a aquelas imagens de sua cabeça.
Eu tampouco consegui dormir, porém não por ter a imagem do assassinato em minha mente. Estou extremamente incomodado por ter essa situação como cotidiana! Não, não posso ter isso como algo tão natural! Me sinto tão desumano quanto quem mata, pois de certa forma posso ter sido conveniente com tudo isso ao decorrer de minha vida, justamente por achar tudo isso normal. Sei que todos aí podem pensar que estou exagerando ou que sou um insensível, porém peço que reflitam para ver se de fato o mesmo não ocorreria com vocês. Se para mim, que sou um pacifista convicto, passou isso, imagine para alguém apenas ligeiramente mais, digamos, enérgico.

Salar de Uyuni, lagunas e demais paraísos

Bolívia – Uyuni, 10 de outubro de 2007.

Finalmente depois de ter conseguido a grana necessária para fazer o tour, volto após ter conhecido o Salar de Uyuni, as lagunas verdes, coloras e etc, geisers, águas termais, entre muitos outros lugares que demonstram o quanto a natureza é simultaneamente forte e bela na Bolívia.

Tudo é tão lindo que soa quase como surreal. Eu olhava para cada paisagem e mal acreditava no que via, tirava uma foto e constatava que as lentes apenas captavam algo extremamente belo. Até tirei fotos, mas creio que o que passa por aqui só pode ser captado por quem vê. Lagoas verde, branca, vermelhas e de muitas outras cores que sequem sei o nome, contrastadas com montanhas de outras tantas cores, céus de muitas formas, areias límpidas, com flamingos e “zorros” caminhando sobre as águas. Não sei quantas variações de cores nossos olhos podem enxergar, mas penso que quase todas elas vi por aqui.

À parte de tudo isso está o salar de Uyuni, sendo que desta vez o principal diferencial não está nas cores. Porém, devo dizer que meu trabalho para mostrar o que vejo foi até mais difícil! O silêncio é o que mais nos fala por essas bandas, pro isso me perguntava: Como fotografar o silêncio? Fiquei por alguns minutos apenas escutando o que o silêncio tinha a me dizer, e digo que a melhor música que já ouvi foi esta, sem palavras, sem melodia, sem som.

Tenho vontade de escrever páginas e mais páginas somente para descrever o que o e senti, mas creio que seria uma grande perda de tempo fazê-lo, pois ainda não encontro palavras para descrever tudo com exatidão. Vulcões cuspindo vapor pela terra, lhamas, banho em águas calientadas por vulcões, “pores” do sol... Como me sinto pequeno ante tanta imponência natural.

Ao final do dia pensava no que mais havia me encantado, porém constatei que mais uma vez estava perdendo meu tempo. É como tentar eleger a mulher mais bonita do mundo: Algo impossível, pois todas são belas, cada qual a sua maneira e com algo de especial.

Mudança de planos: VOU PRA CUBA

Bolívia – Uyuni, 08 de outubro de 2007.

O responsável do hotel para onde eu estava fazendo consultoria estava construindo um campo de golfe no Salar de Uyuni, obviamente inteiramente de sal. O responsável pelo projeto era um arquiteto francês chamado Christian Pensu, um cara muito bacana, que depois de alguns dias tornou-se um grande amigo, compartilhando comigo suas divertidas historias ao redor do mundo. Como ele estava fazendo o único campo de golfe de sal do mundo, me ofereci para tirar fotos do local para que ele as enviasse aos principais periódicos de golfe, o que renderia uma ótima publicidade para o local. Agora estou em meu segundo emprego na região, que basicamente consiste em tirar fotos e também fazer algumas pirâmides de sal no campo de golfe.
Como ele conhecia praticamente todo o mundo em seus 62 anos de vida, perguntei de qual país ele mais havia gostado, quando ele me respondeu que Cuba é sua grande paixão, assim como sua atual esposa cubana. Disse a ele que tinha o grande sonho de conhecer Cuba, e que este seria o meu próximo destino após minha viagem atual, por isso pedi para que ele me contasse absolutamente tudo sobre este inusitado país. Entre as histórias, descobri vendo algumas fotos que o testemunho de casamento dele havia sido ninguém mais ninguém menos do que Alberto Granado, melhor amigo de Che Guevara.

Christian disse que teria um enorme prazer em mandar um e-mail para seu amigo Albertito, perguntando se eu poderia passar uns dias em sua casa em Havana quando visitasse Cuba, tendo dois dias depois uma resposta positiva. Além disso, Christian me passou uma lista imensa de telefones e endereços de seus amigos em Cuba, para que não me faltassem lugares para dormir enquanto estivesse por lá. Juntando todos estes fatores, mais a oportunidade de realizar simultaneamente os sonhos de conhecer Cuba e de pedalar pela América, não é muito difícil de prever qual foi a minha decisão: VOU PRA CUBA!!

Vou seguindo até Lima, porém não vou mais rumo à Argentina. Agora vou seguindo passando pro Equador, Colômbia e Venezuela, para depois pegar um barco e fazer uma volta de bicicleta pela ilha comunista. De lá não sei para onde vou, e sinceramente nem quero saber. Posso resolver ir ao México, pegar um avião para a Lima e continuar o trajeto antigo ou até mesmo ver que estou satisfeito o suficiente para voltar ao Brasil. Vou para onde eu quiser, por onde eu achar que estarei feliz.

Mãe, pai, amigos, família, todos: Não sei quando volto, mas saibam que estou bem. Sei que tudo isso parece uma grande loucura, mas tenho feito o que meu coração manda, e não tenho me arrependido por isso.

Trabalhando como consultor de mkt em Uyuni

Para levantar a grana pra fazer o tour, resolvi inicialmente ir a todas as agências de turismo da cidade, para ver se havia alguma maneira de pagar o tour com o meu trabalho. Dizia que não necessitava de dinheiro nem nada, apenas de um lugar para dormir e montar a barraca, mas mesmo assim não tive sucesso.

Pela noite minha sorte mudou. Acabei chegando até Juan Quesada, um dos caciques da cidade, que tem uma rede de hotéis na região e uma agência de turismo também. Inicialmente Juan me disse que não tinha muito para eu fazer por ali, mas que havia gostado da atitude de pedir trabalho e não dinheiro, por isso no dia seguinte veríamos qual seria meu novo emprego. Como o hotel onde eu estava custava 50 dólares, enquanto os outros da região custavam no máximo 3, ele apenas me cedeu um canto numa sauna desativada e empoeirada para dormir, o que pra mim já estava bom até demais. No primeiro dia trabalhei como jardineiro e carregador de areia, justamente para a obra da saúda onde eu dormia.

A cidade estava sem luz neste dia, sendo que a prefeitura havia avisado que teríamos mais 2 dias de apagão. Sem luz não há como bombear a gasolina para os carros, o que deixou a cidade absolutamente parada, pois Uyuni basicamente sobrevive dos passeios que são feitos pela região. Ao ver os turistas loucos por vir de tão longe e ter de retornar, assim como os donos de agências loucos por perder tanta grana, imaginei que se eu conseguisse resolver o problema de combustível minha sorte poderia mudar. Me pus a pensar um bocado até chegar à solução mais simples, porém que ninguém havia pensado.

Como Juan tinha uma agência de turismo em Potosi, sugeri que ele trouxesse uma de suas caminhonetes lotadas de gasolina para cá, pois as agências estavam perdendo muito dinheiro pela falta de gasolina, o que basicamente quer dizer que ele a venderia ao preço que bem entendesse. Tá bom, isso é capitalismo selvagem, mas foi uma ótima oportunidade para movimentar novamente o turismo da região, além de mostrar para Juan que eu poderia ser melhor trabalhando com a cabeça do que com os braços. Depois disso, disse para Juan que no Brasil trabalhava com marketing e treinamento de pessoas, por isso lhe ofereci uma proposta de Assessoria de Marketing.

Estruturei uma boa proposta de treinamento de funcionários para atendimento ao cliente, o que é o ponto mais fraco dos hotéis daqui, seguido de um pequeno plano de endomarketing pra garantir o bom resultado dos treinamentos, algo como planos de incentivo, motivação e etc. Inicialmente treinaria apenas os funcionários do hotel onde eu estava, mas gostaram tanto da idéia que resolveram expandir a proposta para toda a rede! Agora, apenas no meu segundo dia, fui promovido a consultor de marketing, com todas as regalias de hospedagem e comida que eu poderia imaginar.

Depois de 2 dias fiz o seminário para o pessoal, sendo que o resultado foi tão positivo que me rendeu algumas indicações para trabalhar em outros hotéis de Uyuni e de Potosi. De um dia para o outro, muitas pessoas me convidavam para almoços e festas, quando em certo ponto me vi como uma pessoa realmente importante na cidade. Agora por aqui me chamam de Don Ricardo, que é basicamente um cumprimento que denota hierarquia. O mais engraçado é que eu fiz nada de complexo na minha assessoria! O que para mim era básico antes, me faz um gênio por agora por aqui.

Sinceramente digo que eu poderia ganhar uma boa grana se ficasse por aqui mais alguns meses, mas definitivamente este não é o meu foco. Não faria o mínimo sentido se eu largasse tudo no Brasil para pedalar, para depois parar tudo em função de dinheiro! Viver feliz é o foco, por isso necessito apenas do dinheiro necessário para isso.

Uyuni - Primeiros desafios

Bolívia – Uyuni, 27 de setembro de 2007.

Depois de 3 dias de estrada difícil e semi-desértica, coisa que pelo visto é normal na Bolívia, eis que chego à cidade de Uyuni para conhecer seu famoso deserto de sal. Aqui faz um frio desgraçado, com ventos que por vezes te deixam inclinar o corpo sem cair no chão, e no momento estou com “agradáveis” 8 graus abaixo de zero.

Depois de uma boa noite de sono, saí pela cidade para colher informações sobre como chegar ao deserto de sal e às lagunas Verde e Colorada, pontos paradisíacos da região. As respostas dos moradores foram quase unânimes, algo próximo de “tá loco!” e etc. O fato é que no deserto a temperatura pode chegar a 20 graus abaixo de zero, com ventos mais fortes ainda do que em Uyuni, sem asfalto e ainda por cima sem estrada ou sinalização em quase todos os pontos do trajeto, o que faria com que eu me perdesse sem um bom GPS - Acho que essa não vai dar pra mim. Porém, conhecer os próprios limites não necessariamente implica em deixar de superá-los, por isso apenas vou precisar arrumar uma forma de variar o método.

Como não poderia fazer os 800 km com a Capitu, verifiquei inicialmente a possibilidade de pegar uma carona ou ir de ônibus, descobrindo que ambas as opções são muito raras por aqui. Necessitava ir com uma agência de turismo, que cobrava 80 dólares, quantia da qual obviamente eu não dispunha.

Sendo assim, vou tentar conseguir algum trabalho pra levantar essa grana. Ainda não sei como vou fazer isso, mas sei que venho de muito longe pra desistir no meio do caminho. Vou tirar o dia pra rodar a cidade e ver as oportunidades que virão.

Despedida de Potosi

Bolívia – Potosi, 24 de setembro de 2007.

Hoje me despeço de Potosi, com uma saudade que mal cabe em mim. No começo da manhã me despedi dos mineiros, depois dos amigos do albergue, depois dos novos amigos espalhados pela cidade.

A despedida sempre é a parte mais difícil para um viajante como eu... Mas enfim, tenho muito mais mundo para conhecer. Aos amigos potosinos , digo que parte de mim nestas vastas terras altiplanas. Saudades, saudades, muitas saudades...

Trabalhando nas minas de Potosi


Bolívia – Potosi, 23 de setembro de 2007.

Depois de muita insistência, consegui que me deixassem trabalhar por um dia nas minas de Potosi. Jamais havia visto trabalho sob condições tão precárias e perigosas.

Tudo começa no alto da montanha de Serro Rico, num um frio de zero graus, com o agravante da água que encharca o solo e deixa tudo pior quando entra pelas botinas. Conforme vamos adentrando a montanha, o oxigênio fica mais escasso, os espaços ficam cada vez mais sinuosos e claustrofóbicos e a temperatura começa a subir – chegando a insuportáveis 45 graus. Sob condições tão extremas, o trabalhador daqui tem uma jornada que varia de oito a até 24 horas (sem comer, apenas com folhas de coca nas bochechas), das quais agüentei apenas 3.

Antes de começar a jornada de trabalho, os mineiros oferecem folhas de coca para “El tio”, a estátua de um diabo, para que não ocorram acidentes e as minas continuem férteis. Quando perguntei sobre a inusitada religião, os trabalhadores disseram que são cristãos, mas que a mina é lugar da Pachamama (a Mãe Terra), e do diabo, que consome vidas neste inferno abaixo da terra. Por aqui não existe vida, não existe deus, apenas trabalho e muita resistência física e mental.

Por aqui eles sobes e descem por espaços minúsculos carregando até 40 quilos nas costas, com pouquíssimo oxigênio misturado ao pó de silício, que consome lentamente os pulmões. Enquanto eu tinha a nítida sensação de que meus pulmões necessitavam de mais do que a mina oferecia, via em contrapartida os mineiros plenamente adaptados com a dura rotina.

Nas regiões em que os turistas não têm acesso, espantadamente vi crianças de 12, 10 e até 8 anos trabalhando sem diferenciação de um adulto, sem saber o que é escola ou infância. Assim segue a vida por aqui, normalmente até a morte ou a aposentadoria, dentre as quais apenas a primeira opção é conhecida por eles. Para se aposentar pelo estado, o mineiro precisa possuir três fatores conjuntos: 65 anos, 50% dos pulmões comprometidos e 300 contribuições ao sindicato. Por exemplo, se você tem 65 anos, 50% do pulmão ferrado, mas não fez todas as contribuições, infelizmente precisará trabalhar um pouco mais.

Quando perguntei a José Luiz, um dos mineiros mais antigos de Serro Rico, porque se submeter a tudo isso, ele me fitou seriamente e disse:

- Amigo, não há outra maneira de sobreviver por aqui. Tenho 67 anos, por isso sou uma exceção entre poucos de nós que passam dos 50. Temos que fazer isso por nossas mulheres e filhos.

- E até quando acha que vai fazer isso? – Perguntei.

- Até que El tio me chame, amigo.

Ao ver que fiquei muito abalado com suas respostas, José sorriu e mudou o tom da conversa:

- Você trabalhava com o que, menino? Computador? É quase a mesma coisa! Tudo é questão de acostumar!

Não consegui sorrir com a brincadeira definitivamente séria demais para mim. Sendo assim, perguntei apenas de ele acreditava no que acabava de me dizer. No mesmo instante, José parou de sorrir e manteve uma dignidade comovente no olhar, dizendo:

- No começo eu não acreditava em nada disso, mas com o tempo educamos a mente para isso. Se pensar no quanto tudo é difícil eu nem posso entrar na mina, pois El Tio me devora mais rápido.

De tanto que estudei para me qualificar no trabalho, pensava que eles não conseguiriam fazer o que faço, porém constato que a recíproca é verdadeira. Amigos, conheci hoje as pessoas mais valentes e resistentes de toda a minha vida, sentindo na pele como a necessidade de sobrevivência nos leva a uma adaptação sob condições tão extremas de vida. Confesso que por hora não sei mais como vou voltar a trabalhar em meu computadorzinho, pois agora sei de fato que há muita gente que vive assim.

Aos sair da mina, curiosamente alguns trabalhadores vão para a igreja para agradecer a Deus por mais um dia. Pelo visto, aqui na mina é necessário andar de mãos dadas com Deus e o Diabo.

Potosi - Futebol com os mineiros


Bolívia – Potosi, 22 de setembro de 2007.

Hoje participei de um campeonato de futebol com os mineiros de Potosi. Como venho da “Terra do futebol arte”, olhava para as arquibancadas e via que todos apontavam para mim, imaginando que veriam um gênio jogar, coitados. rs Aliando este nervosismo ao fato de que eu não sou propriamente um craque, imaginem no que deu...

Aos dois minutos do primeiro tempo cruzaram a bola para mim na pequena área, quando apenas chutei o vento e caí de bunda no chão, que vergonha. O zagueiro adversário pegou a bola e aproveitou o contra ataque, marcando o primeiro gol da partida. Todos riam muito de meu infortúnio, menos o técnico, que estava vermelho de tanto gritar “brasileño de mierda!”, “Hijo del putra!”, entre outras expressões não exatamente amigáveis e hospitaleiras.

Porém, meu momento chegou no segundo tempo da partida. Como agora tenho relativamente um bom preparo físico, aliado ao fato de que os mineiros estão cheios de silício nos pulmões, apenas eu conseguia correr enquanto todos estavam cansados. Daí por diante tudo foi muito mais fácil, pois eu apenas precisava chutar a bola pra frente e sair correndo, que nem o Forest Gump, conseguindo fazer três gols até o final da partida. Infelizmente nosso time perdeu mesmo assim, mas como eu me diverti! Engraçado, eu estava acostumado a me divertir apenas quando vencia.

Como toda boa pelada, tudo acabou com muita cerveja e piadas. O técnico do meu time dizia aos outros que “o brasileiro joga mal que só, mas como corre!”. Por via das dúvidas, fico na arquibancada em caso de uma nova partida. Rs

Potosi - Amigos europeus do albergue


Bolívia – Potosi, 22 de setembro de 2007.

Estou hospedado em um hotel bem baratinho e simpático chamado Koala Den, onde convivo com mochileiros de todo o mundo, principalmente com europeus. Curiosamente, há poucos latinos visitando a América Latina. Acabei formando um grupo de amigos legal, aproveitando o pouco tempo que teremos juntos por nossos pontos em comum de viagem.

- Emma, a inglesa, também viaja de bicicleta, por isso temos feito ótimas pedaladas por Potosi e redondezas - Sim, de fato também pode ser interessante pedalar acompanhado. Nas horas de hotel, ela me ensina a pintar vasos de barro, por mais que eu ache que ela vai desistir em breve, pois sempre reclama que eu sou muito afobado e minhas mãos tremem. Rs

- Cedric, o francês, é um excelente piadista, capaz de ficar horas me sacaneando por causa da copa do mundo. Fazer o que, tenho que engolir essa. Rs

- Rubem, o Espanhol, é o cozinheiro do grupo.

- Rob Doyle, o irlandês, toca violão muito bem, além de ser uma ótima companhia para discutir política. É muito interessante confrontar os pontos de vista de um latino e de um europeu na política, para ver o que cada um pode agregar ao outro.

- Celine e Lidy, as holandesas inseparáveis, apenas nos acompanham e escutam cuidadosamente nossas conversas. De vez em quando soltam comentários inusitados, sobre detalhes da paisagem ou das situações que ninguém havia reparado.

Entre os vários novos amigos há muito outros, por isso detalhei apenas os principais. Haveria também muitas histórias com Ingo, o alemão que saca tudo de economia; Sonja, a alemã que se encanta por tudo que vem do Brasil; Thereza, a francesa que não toma banho, entre muitas outras figuras imperdíveis.

Em muitas noites não dormíamos, seja para conversar, andar pela cidade ou apenas jogar um bom pôquer. Com sorte minha consegui convencer a todos de jogar cartas sem apostar, senão teria perdido até as cuecas! Seja como for, tem valido a pena os dias ao lado de gente tão legal. Percebo diariamente o quanto somos simultaneamente diferentes e iguais. Nossas diferenças têm sem complementado, de modo a fazer com que os dias sejam simultaneamente divertidos, intensos e instrutivos. Vejo em cada um deles o mesmo brilho nos olhos inerente ao viajante, um misto de curiosidade latente e leveza de espírito. Não sei se dá pra explicar, mas quem viaja sabe do que falo.

Paixão por Potosi


Estou perdidamente apaixonado por Potosi, vendo aqui uma casa que tão bem me acolheu. Se antes pensava em apenas passar a noite por aqui, talvez fique pelo menos uma semana ou mais.

Hoje fiz muito radical até as águas vulcânicas de Tarapaya, só descida maneira. Como é um lago vulcânico, resolvi dar uma de descobridor e tentar chegar até o fundo. Depois de me cansar de mergulhar e perder o fôlego, resolvi tomar a inteligente decisão de perguntar a profundidade do local: “1000 metros”, respondeu o sujeito ao idiota que vos escreve agora. rs. Quem cuidava do local era um gentil senhor chamado Fred, que passou o a tarde comigo a contar lendas dos Incas. Falava de tesouros, cemitérios, rituais e muitas outras historias que me contagiavam e estimulavam a imaginação, como as crianças que ouvem historias do avô.

A lama vulcânica é muito divertida para brincar de passar no corpo, por isso não pensei duas vezes antes de fazer isso. Pra manter a fama de Joselito, taquei lama no alemão que estava do meu lado, que logo tacou em mim e no sueco a seguir. Conclusão obvia: Guerra de lama!!!rs muito divertido.

Amigos, amei este lugar de primeira, pois de alguma forma tudo aqui mexe profundamente comigo. Algo aqui me faz respirar mais leve (e não é a altitude!), como se houvesse uma profunda harmonia entre o espaço, as pessoas e eu.

Reflexões quase revolucionárias

Como havia dito nos primeiros trechos da Bolívia, não tinha me sentido muito à vontade com o povo daqui, mas minha opinião se modifica gradativamente. Se eu continuar neste ritmo, vou me apaixonar pro todos e me sentir um autêntico boliviano.

Aqui na Bolívia há muitos índios camponeses, que muitos ainda chamam de mitayos. Para suportar a dura rotina de trabalho que lhes é imposta eles mascam muita folha de coca, o que deixa suas bocas e dentes verdes e com uma gosma escura a escorrer pelos lábios, o que lhes confere um aspecto terrível. Nas típicas reflexões de pedalada, percebi que não fazia sentido o meu afastamento, pois estas pessoas eram o motivo da minha viagem. Sendo assim, resolvi passar o dia numa aldeia de mineradores de Potosi, disposto a ouvir cada palavra do que eles tinham a me dizer.

Ao conversar mais com estas pessoas - com um pouco de dificuldade, pois eles falavam mais quéchua do que castelhano- percebo mais uma vez que as fronteiras entre nós e o outro, assim como as fronteiras geográficas, são invencionices do homem. Descobri um povo extremamente pacífico e trabalhador, por isso me senti bastante envergonhado devido ao juízo inicial que fazia deles. De fato a exploração é algo rotineiro e ao mesmo tempo aceito entre eles, por isso agora sinto um certo nojo de quem os explora, não mais deles.

Mediante a uma rotina tão dura, confesso que esperava ouvir brados de ira ou algo do tipo, por isso fiquei surpreso ao verificar um misto de conformidade e garra para superar as adversidades diárias, me levando a pensar se o excesso de passividade lhes é prejudicial algumas vezes. Não sei, talvez fosse melhor usar esta garra tão grande para sair da exploração, não para sobreviver a ela.

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Graças ao bendito filme Diários de motocicleta, em muitos povoados me chamam de “compay Guevara”. Como detesto qualquer tipo de comparação, no início ficava bastante chateado, mas agora até atendo quando me chamam assim. Em comum talvez tenhamos a determinação que separa sonhadores de utopistas, ou também a vontade de conhecer o que só era visto nos livros, mas creio que as semelhanças parem por aí. Sinto decepcionar a muitos, mas não sou um revolucionário.

Sinto como se uma semente muita fértil estivesse germinando em mim, mas não faço idéia de quais serão seus frutos. Por hora, vou me deliciando com a gostosa sensação de ser mudado pelo mundo, depois posso pensar em mudá-lo, talvez.

Desafio - Subir os 4400 metros de altitude de Potosi


Bolívia – Potosi, 21 de setembro de 2007.

Depois de três dias e meio de subida dura, finalmente consigo chegar até a cidade povoada mais alta do mundo: Potosi.

Sabia que iria enfrentar a meu maior obstáculo até então, por isso sentia um misto de medo e preguiça ao imaginar que subiria com a Capitu até 4400 metros acima do nível do mar, assim como sabia que entraria no altiplano boliviano, o que significa enfrentar ventos mais fortes ainda (o que eu achava impossível) e temperaturas abaixo de zero.

Ao chegar à grande serra, via lá no alto a estrada onde eu devia chegar, sabendo que acima das nuvens havia mais caminho a seguir. Se eu imaginasse o obstáculo completo a transpor, com certeza não subiria a serra ou sequer sairia do Rio de Janeiro, por isso me concentrei em vencer cada quilômetro. Como subi muito lentamente o corpo se adaptou bem com a altitude, por isso não senti dor de cabeça, tontura ou algo do tipo, mas o grande problema era o ar que me faltava cada vez mais a cada metro. Se ao subir uma serra de bicicleta o ar já falta normalmente, acrescentem a isso o impacto do vento, do frio e da altitude para imaginar a dificuldade. No começo da serra eu pedalava 5 km e descansava, depois passei a descansar a cada 1 km, depois a cada 100 metros, depois 10, para finalmente, nos últimos 500 metros vencer, apenas carregar a Capitu. Não sei explicar com ou porque, mas sabia que conseguiria, por isso segui confiante até o final.

Ao chegar ao final da serra, olhava para baixo e não acreditava no que acabara de ter feito. Absolutamente esgotado, deitei a Capitu no canto da estrada, sentei-me ao seu lado e me pus a chorar compulsivamente, sem saber exatamente porque fazia aquilo – Me deu vontade e chorei, apenas isso. Ainda me pergunto como consegui, mesmo sabendo que não tenho todas as respostas para isso, então apenas me delicio com a gostosa sensação de pedalar entre as nuvens.

Sei que ainda estou no começo da jornada, e que desafios e recompensas maiores virão, por isso estou cada vez mais empolgado para seguir em frente. Puxa, imaginava desde a minha casa como seria difícil subir esta serra... Puxa, consegui!!!

Potosi - Hospitalidade e partida de futebol.

Bolívia – Potosi, 17 de setembro de 2007.

Como começou a chover e ventar muito forte enquanto eu estava ao pé da serra de Potosi, resolvi parar para descansar no pequeno povoado de Viña Pampa. Que lugar mais isolado e aconchegante!

Cinco minutos após minha chegada, toda a cidade se juntou para me recepcionar (digo toda mesmo, pois são apenas 250 habitantes), com hospitalidade e curiosidade tão grandes que fizeram com que eu me sentisse em casa, e olha que essa é a primeira vez que sinto isso na Bolívia. Passei a tarde com as crianças, vendo o quanto elas são iguais em toda parte, pois a vida é que nos modifica com o tempo. Brincaram com a Capitu, tiramos fotos, me contaram piadas e até tentaram me ensinar um pouco de quéchua (que obviamente entendo patavinas).

Ao anoitecer me juntei com o pessoal mais da minha idade para jogar futebol, com a cidade inteira ao lado do campo querendo ver o “gringo desajeitado” jogar. Como aqui o pessoal joga muito mal, pelo menos para os padrões brasileiros, posso dizer a modéstia de lado e dizer que joguei muito! Dei ovinho, lençol e fiz quatro gols, sendo um deles driblando dois e mais o goleiro! As meninas se juntavam nas laterais do campo e gritavam em coro “gringo, gringo!”, foi muito divertido. Me senti o próprio Ronaldinho, mesmo sabendo que sou considerado um grande perna de pau no Brasil. No final da partida, fizemos guerra de lama e tomamos banho de chuva, como nos meus tempos de infância.

Posso com seguridade dizer que hoje foi o primeiro dia em que realmente curti o pessoal da Bolívia. Estava preocupado com isso, mas agora está tudo em paz. Cara, que gente simples e feliz.